centavo. Se por azar aparecerem os res–
pigadores, manda-os embuta a pontapes.
Eu
já
preveni os dos outros campos.
E' lempo de acabar com este costume
ridlculo. Acabaram por se convencer que
eu era o seu pai, a sua máe, sei lá que
mais 1 e que \hes devia dar de comer
sem fazerem nada. Os respigadores., .
vem buscar a colheita, e o que eles vem
fazer. Caramba
J
- Mas, patráo, se eles sabem isto,
pode muito bem acontecer que deixem
de ceifar, patra:o.
- Nós os fa remos terminar a chico–
lada .. , Pois entao estes nl'io sao os meus
Indios ? Além d,lsso eu ja fiz retroceder a
toda a velocidadc os da aldeia que tinham
descido com as mullieres e os guaguas;
como se, Hio belila como nos outros anos,
eu estivesse disposto a deixá-los respi–
gar1que
\•á
o procurar outro qut: os sus–
tente . .. A epoca da estupidez acabou.
Os Indios ofegantes, limpando a cara
as costas da máo, miraram-no. As caras
estavam brilhantes de suor. Ele tomou
um tom compassivo:
- Tens-lhes dado chicha ?
- Oesde pela manhl'i.
- Dá-lhcs outro trago... E' preciso
Ser caritativo. O essencial, como ves, e
ter bom cora¡;ao. Tu nao vb como eles
estl'io suados?
Satisfeito por ter mostrado a sua gran–
deza de alma, Dom AfonJ';Oesporeoo a
mula e afostou-se a camiuho da aldeia,
dei-sando Policarpo
con~ternado.
Nunca
como agora o patr3o se tinha mostrado
tli.o miser8velmenteavaro. Nos anos ante–
cedentes, anos medfocres, ele nunca
fizera questáo do defeso de respigar.
~~~~~:lap~eac~~~Üc~~t~u~~d~c~~~~ó::~~
graos encobriam ate os menores recan–
tos da casa que .•
-Ah! eu compreendo•.. Que imbecil
eu sou .. . O que ele quer é auxiliar os
Indios com pequenas esmolas. Porque,
nesse caso...
POs-se a meditar sobre a cheia, sobre
os huasipungos arrebatados pelas éguas,
sobre os mortos, sobre as familias esto–
meadas. Apeteceu-lhe beber. Alem disso
o patrao náo acabava de !he dar ordens
nesse sentido ? Reuniu toda a sua gente
e distribuiu abundantes r:u;óes de chicha.
Sentiu tanto prazer ero encber boas me–
didas, como sentiria em se resgatar.
Depois, bebeu também, o;em deixar de
pensar: •Sim, agora
e
preciso que tu lhes
des dois punhados de milho ou do que
quer que seja, a cada unu, afirmou ele
em voz alta
e
sem razao.
-Sim, é preciso que ele !hes dé dois
punhados. E' preciso que ele os a}ude.
A' medida que passava em revista os
seus campos, os projectos de Oom Afon–
so tomavam urna nova amplitude. Era
possuidor duma explendlda colheita,
duma dessas colheitas a que us seus
amigos cbamavam a uorte grande». Em
presen~a
dum porvir ti!.o encantador,
Doro Afonso
dei;~:ava-se
dominar por
todas as formas de avareza. Em primeiro
lugar, era preciso vender por bom pre¡;o,
sob pena dos aldeóes nao pot1erem com–
prar, por falla de dinheiro, a colheita
que pusesse em
pra~a!
Sem contar que
em Quito o
prc:~o
do griio era muito
bah:o na época das ceifas. Esperaría.
Estava dlsposto a náo deixar fugir urna
ocasiáo tao brilhante comu a que Deus
acabava de \he dar. Oeu um tal suspiro
de angústia que a sua mula levantou as
orelhas. Náo ... Nio .. , aguardarla e,
logo que as
cota~óes
estivessem na alta,
servir-se-ia da estrada e inundarla o
mercado da capital.
Agora,
gra~as
A estrada ia conhecer
~~~rc~~~~~s~ s:;s~ae:;:;::s ~~~
0
~1~¡1~~
reservava. O cura nli.o seria o único a
tirar proveito deJa. Pobre cura l Ele havía
de precisar que ele lhe alugasse os seus
A SEPULTURA DOS JND JOS
camióes. Por dez, vinte viagens. Dorn
Afonso sentiu-se tomado duma crise de
bondade lacrimejnnte. Lameotou as co–
lheitas que as cheias tinham levado. Vi–
brou num amor profundo pd o cura, pelo
Jacinto, pelo vesgo Rodriguez, pelos
irmaos Ruata. Estava afectuoso e sensive
l.
Abriu os
bra~os :
-Siro... Nós somos todos irmá:os.
Tinha lágrimas nos albos n1as quis
defender-se contra a comoc;ao e esporeou
a mula. O animal fez uro desvio e partiu
a galope em direc¡;áo a casa do cura.
O vento qne sacudia o cimo das árvo·
res, em turbilhio frenético, ia quebrar-se
de encontro
~
porta da cabana de André,
abrindo-a completamente. Cunshi, a toda
a pressa, preparava um punhado de
milho roubado n·um huaslpungo vizinho.
Ouviu bater a porta e franziu as so–
brancelbas. Tinha os olhos avermelhados
pelo fumo e o seu lábio superior levan–
tado, mostrava os dentes e o alto das
gengivas. Com receio de que os vizinhos
pudessem sentir o cheiro da cozinba,
apressou-se a ordenar ao seu fedelho:
- Vai depressa pOr a tranca .•• Nao
é preciso que os vizinhos nos espiem.
Coma lace enlambuzada de
mamaJ>ot·ra
o guagua obedeceu, pOs um bocado de
madeira atrfls da porta, e voltou para o
canto ondeo esperava a marmita e os seus
residuos endurecidos de
a~orda
azeda.
Ante~
de se inclinar sobre a merenda,
lam;on um olhar de inveja para a panela
onde saltavam os grl'ios de milho.
- Senta-te,
i~to
e só para o pai. Tu
já tens a marmita cheia; o que é que
queres mais ?
·
O garoto amuou e acocorou-se no seu
canto; depois coro a marmita entre os
joelhos, resignou-se
e
pOs-se a lambe:-la.
André regres!lava do campo. Acabava
de deixar os
cornpanheiro~
que moravam
na colina ; ali, a fome fazia-se sentir
cruelmente.
Passada urna semana, já os fndios
esperavam as esmolas que o patrao tinha
por costume distribuir-lhes depois de
cada colheita. A esmola - urna magra
fanega- constituia com o huasipungo
emprestado e os dez centavos de salério
quotidiano e teórico, os recursos anuais
duma fam!lia india.
Dom Afonso tinha esquecido o cos•
tume; porque náo se queda acreditar
que o que
se
dizia na aldeia pudesse ser
verdade:
t.-
Ele náo dará esmola aos
pobres Indios este ano. Compra milho,
batatas, trigo, enfim, tudo, nas nutras
fazendas, para vender em Quito quando
os pre¡;os subirem •.
O cáo lan¡;ou um latido prolongado;
anunci11.vaa passagem de André por de–
trás da casa, donde safa um cheiro a páo
quente
1
bom cheiro a comida que fazia
contrair os estómagos em jejnm.
Estugou o passo. Nao ousava ainda
acreditar que alguma coisa de comer o
esperava.
No dia seguinte, de manhá, os Indios,
um por um, chegaram a casa do patrio,
sentarem-se A volta do pátio e espera–
raro que Dom Afonsito
se
Jevantasse,
Vinham apresentar-lhe os seus lamentos
e descrever-lhe a sua completa miseria ;
até
i\
.hora do pedido, falaram em voz
baixa das esn1olas conseguidas hos anos
anteriores, como se quisessem convencer-
•se, recordando-o da for¡;a deste hébito.
O mordorno, todo inchado de impor–
tancia, náo cessava de entrar e sair de
casa espa,lbando entre os grupos noticias
alarmantes.
-O patrao está assim ...
- O patriio está a levantar-se...
-O patráo está a tomar cafe..
- O patrl'io está pronto.
E, sucessivamente, os Indios agrupa–
varo-se, abandonando toda a preocupa4Jio
pessoal para criarem uma espécie de
personalidade colectiva.
De repente, o patráo
apresentou-~'"'
na galeria. Os tlHJrmúrios cessaram ime–
diatamente e o medo cresceu. O patrl'i.o.
arrogante, tinba na m.lio um pingalim
que lhe servia para pontuar as suas
ordens.
- Que bá?Que querem? perguntou ele.
Mas nada rompeu. o silencio que se
seguiu. Ninguem, de entre os Indios ater–
rorizados, ousou formular a sua
peti~io.
- Que querem ? VAn ficar aqul como
idiotas ?
Entl'i.o Policnrpo, sentindo os olhares
suplicantes dos Indios fixos nele, avanc;ou
para o patrio e falou em seu nome,
ligeiramente perturbado :
-E' que, patrl'io ... eles estlo a\1,.,
eles vieram para suplicar a Vossa Senho–
ria que !hes
fa~a
a caridade de . . .
Andrt e os Indios,que estavam na pri–
meira fila, notaram o tom hesitante do
porta-voz e, nervosos com a idela de um
fracasso, apressaram-se a conclui r a
sUplica.
-A esmola patrl'i.o, •.
- Nós morremos de fome.
-Se nao nos der nada para que lado
nos havemos de voltar ?
Foi entl'io cumo se a comporta que
tinha durante muito tempo retido os
lamentos desta turba se abrisse; todos
encontraram alguma coisa para dizer,
todos acreditaram que os seus sofrimen–
tos eram os mais dificeis de suportar,
todos quiseram expor a tragedia dos seus
huasipungos
1
todos murmuravam alguma
coisa. porque todos tinham alguma coisa
a pedir.
O ruido confuso e desagradável de
todas estas vozes tomava quase a forma
de provoca¡;io e amea¡;a, que satisfazia
e
assustava, ao mesmo lempo,os próprios
Indios. Nao procuravam revoltar-se, ape–
lavam simplesmente para o corac;ao deste
homem de mau humor que, nervosamente,
batia com o chicote nas botas.
- O pouco que deu o huasipungo
já
se
comeu.
-Por causa da cheia nl'io ternos mais
onde ir.
- Tu tens sempre dado, patrl'io.
- Só agora
é
que nao queres dar.
-56 um pouco de milbo
!
- Esmola !
- Esmola !
Tinham esgotado todos os seus argu–
mentos e repetiam incansAvelmente :
- Esmola !. .. t:Sucuritus».
Este ruido, que invadiu a galeria, pOs
Dom Afonso fora de si. Sacudiu a cabec;a
furiosamente como se a multidáo \he
tivesse colocado um gancho na garganta
e pós-se a berrar:
- Caramba! Eu
já
disse mil e uma
vez que nl'i.o vos dou nada. E' um cos–
tume idiota. Pago-vos dez centavos por
dia. O que
e
que querem mais? Fora
daqul!
As sUplicas cessanm mas os Indios,
com o estOmago vazio, niío tinham ainda
compreendido. O que e que ele querla
dizer por 4!:este costume idiota"' ? Ficavam
lmóvt'!is, quedos e mudos. En t
!i
o, no
espirito do patráo fez-se luz sobre diver–
sas reflexOes financeiras:
~Era
m precisos
nada menos de trinta quintais para
dar a esses Indios ordinários. Trinta
quintais que se podem vender por bom
pre¡;o em Quito. Que podem servir para
pagar ao cura o aluguer dos camióes. Se
nao
SOLI
intransigente, nl'i.o terel dinheiro
suliciente para tomar parte de urna
maneira activa no negócio dos gringos.
Estes ladróes dos Indios querem arruinar
o futuro dos meus filhos e o meu. Ab!
mas nao terao nenhuma sorte comigo.
Eu sou um homem 1,. Agarrando o chi–
cote com as duas máos e arqueando-o,
exclamava:
- Por que esperam ? Nao percebe–
raro? Caramba!